David Bowie foi o rei da performance, e sua morte aos 69 anos foi um último ato pensado e tornado obra de arte com o lançamento, apenas dois dias antes de sua partida, do álbum testamento Blackstar. Como fã, minha primeira reação foi de choque. Depois achei que tudo a cara dele. A característica mais marcante de Bowie foi o controle que ele exercia sobre sua figura, totalmente calculada para construir suas múltiplas imagens. Ele nunca renunciou a esse comprometimento com a performance, e essa é a maior razão pela qual não temos uma biografia oficial de David Bowie, com autorização do mesmo, publicada. Mas entre os livros que li sobre a carreira do camaleão, gosto muito e recomendo Bowie: a biografia, escrita pelo jornalista Marc Spitz e publicada no Brasil pela editora Benvirá.
Spitz já tinha experiência em biografias de roqueiros quando resolveu se aventurar pela vida de Bowie, mas ele admite na introdução do livro que sentiu muito a responsabilidade de falar sobre um ídolo seu, ainda mais um tão misterioso e cuidadoso com sua imagem. A reportagem de Spitz é competente, levanta pontos nebulosos do passado do astro e traz entrevistas com muitas pessoas cruciais e próximas a ele em momentos chaves da carreira, como a ex Angie Bowie que criou o figurino de Ziggy Stardust.
Ele não alivia pro Bowie: fala de como o roqueiro usava o charme pessoal para seus objetivos e deixava um rastro de corações partidos, do envolvimento com groupies adolescentes, da fase paranóica em que ele abusava de drogas e chegava a guardar a própria urina na geladeira temendo que ela fosse roubada por bruxas e usadas em feitiços contra sua vida e de como ele jogava com sua sexualidade para fins de marketing. Mas também mostra como o comprometimento de Bowie com sua obra e com a arte em geral acabava por ser o centro que equilibrava o artista em seus picos de excessos.
A capacidade de renovação de Bowie na verdade era um instinto de sobrevivência apurado e uma dedicação imensa. Ele era um viciado em livros e workaholic que estudava sempre que não estava nos palcos. Sabia se cercar e apoiar amigos talentosos, dos quais tirava inspiração. Ele conseguia balancear planejamento meticuloso e criatividade explosiva, e isso o tornava o popstar perfeito.
O que falta no livro de Spitz infelizmente é a voz do próprio Bowie. Ele foi lançado em 2009, quando o artista já estava em reclusão após os problemas de saúde ocorridos durante a Reality Tour. Por isso mesmo o último álbum citado na biografia é o Reality, já que o livro saiu antes de The Next Day e Blackstar. Mas vale muito a pena para conhecer mais esse mistério estelar que caminhou na Terra sob o nome de David Bowie.
Deixa mais perguntas que respostas, mas como escreveu Ursula K. Le Guin, a habilidade mais necessária em tempos de trevas e conflitos é justamente saber quais perguntas não devem ser respondidas, e não respondê-las. E esse segredo Bowie dominou como ninguém.