Quando assisti ao anime Death Note pela primeira vez, me surpreendi com a sua qualidade. A história de Light Yagami (ou Raito, em japonês) envolve um livro que cai do céu, e que dá a habilidade de matar qualquer ser humano ao escrever o seu nome nas páginas em branco. A grande sacada é o fato de que o personagem resolve fazer a justiça com as próprias mãos e matar os grandes vilões do mundo real: ladrões, assassinos, políticos corruptos e por aí vai.
A trama se desenvolve ao ponto de finalmente questionar o espectador se as atitudes de Light são corretas, já que ele está assassinando pessoas, se tornando um assassino. Os detalhes existentes nos diálogos e nas tentativas de esconder sua identidade da polícia se tornam o principal motivo de prender a atenção, transformando a animação em um verdadeiro “polícia e ladrão”, em que o objetivo é descobrir quem matará o outro primeiro.
Além do anime, um mangá (distribuído no Brasil pela editora JBC) e algumas adaptações japonesas em live action foram lançados, conquistando fãs pelo mundo todo, de diversas faixas etárias. Mas ainda existe um enorme preconceito com esse tipo de linguagem, fazendo com que muitos acreditassem que esse seria “somente mais um desenho com personagens gritando o tempo todo”. Por conta disso, Death Note acabou se tornando uma enorme referência de qualidade entre os fãs, mas desconhecido por aqueles que não conhecem muito sobre a cultura pop japonesa.
Em 2016, a Netflix anunciou a adaptação da história de Death Note para um filme, que seria lançado na sua própria plataforma. Famosa por trazer grandes conteúdos e estabelecer uma base de fãs enorme, como Black Mirror e Orange is the New Black conseguiram, a empresa poderia trazer uma maneira de atrair as pessoas para a história de Light.
Conforme foram anunciados os atores que interpretariam os personagens, muitos fãs se revoltaram: nenhum era japonês. Se não bastasse, os vídeos divulgados mostravam atuações fracas e cenas apelativas. A Netflix começou a mudar, cancelando séries inesperadamente, e lançando conteúdos fracos, como o atual Punho de Ferro. As esperanças de haver um conteúdo interessante para todos passaram a ser medo de estragarem uma história tão cultuada.
Estamos em agosto de 2017. O filme de Death Note foi lançado. Infelizmente.
Um suicídio audiovisual
Antes de criticar o filme, é importante que deixemos de lado tudo o que sabemos de Death Note, o mangá e anime. O que existe não é uma releitura ou adaptação, e sim inspiração na obra original para criar um conteúdo completamente novo. Com apenas 1 hora e 40 minutos de duração, foi preciso criar um roteiro completamente novo, de modo que fosse possível criar uma trama principal com começo, meio e fim. Por conta disso, não haverá comparações com os personagens originais, que são muito mais bem construídos e sérios.
Basta assistir os primeiros 15 minutos para entender que o filme da Netflix é feito para um público muito específico: os que apreciam conteúdo sem profundidade. Isso, de longe, é uma crítica negativa: quem nunca preferiu assistir a um filme de ação a um drama complicado? Há um momento certo para tudo. Ainda assim, o problema é que nunca houve qualquer anúncio de que a narrativa seria feita dessa forma, frustrando muita gente.
Os principais erros estão no roteiro. Light, que aqui nos é apresentado como um jovem rebelde, extremamente exagerado em suas reações, não faz sentido dentro de um universo real. Imagine a seguinte situação: você está sentado, em um lugar aberto, e um caderno cai do céu. Eu duvido que a sua reação seria simplesmente pegar o objeto e guardar em sua mochila, sem sequer indagar sobre a sua aparição. E é exatamente isso o que ele faz.
As coisas só pioram depois do início. Light novamente tem reações esquisitas, gritando loucamente ao ver o deus da morte pela primeira vez, mas fica sem culpa alguma por ter decapitado seu colega de sala (e ver tudo da janela). A péssima atuação do ator Nat Wollf deixa tudo ainda pior, com expressões exageradas e gritos agudos. Chegamos até a torcer para que ele morra logo.
Os outros personagens não escapam das inconsistências. “L”, o detetive principal encarregado em descobrir quem é o assassino invisível (chamado de “Kira”), consegue convencer no começo, mas em seguida se mostra completamente instável e pouco profissional. Aparentemente, os criadores do filme achavam legal que os personagens gritassem e jogassem coisas ao redor, sem necessidade alguma disso. Os diálogos entre eles beiram o impossível, com falas sem sentido e inexpressivas – a conversa entre Light e L beira o insuportável.
Da metade de Death Note, o filme, à diante, as tramas parecem se resolver sozinhas. Não há muitas explicações sobre os motivos pelo qual Light é descoberto, obrigando o espectador a acreditar que L é tão incrível que descobriu sozinho. Talvez, se ele fosse um personagem que demonstrasse confiança, isso até pudesse acontecer, mas o que fica é a sensação de que não houve tempo para encontrar uma solução melhor. Enquanto isso, o próprio Death Note deixa de ter importância com suas centenas de regras, tendo somente três que realmente importam:
- Ao escrever o nome de uma pessoa, pensando em seu rosto, ela morrerá de maneira trágica;
- Ao escrever o nome de uma pessoa, pensando em seu rosto e detalhando as suas últimas horas de vida, tudo ocorrerá como escrito e ela morrerá da maneira escolhida;
- É possível rasgar uma folha com um nome para impedir que a morte dessa pessoa ocorra, mas isso só poderá ser feito uma vez.
A última regra descrita acima é um dos maiores furos na narrativa. Dita somente em um momento oportuno para o personagem, que parece não ter interesse algum em ler o que pode ou não fazer, ela deixa ele poderoso o suficiente para controlar uma pessoa da maneira que quisesse por várias horas. Conveniente, não? Por conta disso, o restante do filme se torna uma briga constante por descobrir quem está controlando quem, e qual será o primeiro a morrer. Chega a hora das cenas de ação.
Quero propor um outro pensamento. Imagine que você está na rua, e dois homens passam correndo por você. Um deles com uma arma na mão, enquanto o outro corre. Ao verem você, aquele que está com a arma diz que o outro é um assassino em série. Você acreditaria nisso? Bem, eu pensaria que são apenas dois loucos, e correria o mais rápido possível dali. Acredito que as pessoas que vivem na cidade de Death Note sejam diferentes de mim, e da grande maioria das pessoas.
O filme não tem fim. Alguns personagens morrem, outros descobrem que Light é o assassino. Mas nada acontece, cabe ao espectador tirar as próprias conclusões (a menos que a Netflix pense em fazer uma continuação, o que realmente espero que não ocorra). A sensação final é a de que assistimos quase duas horas de atuações ruins, furos de roteiro, mortes horripilantes e nenhuma conclusão.
Mas há como gostar de Death Note: sabendo que não há uma trama aprofundada e bem construída. Pegue um balde de pipoca, reúna os amigos, dê risada das péssimas atuações. Grite quando alguém morrer e o sangue voar na tela. A trilha sonora, com músicas antigas, vai agradar a todos. As cenas escuras, escondendo os efeitos de computador para criar o deus da morte, deixarão de ser um incômodo. No fim, você falará bem de um filme que foi feito para se divertir.
É uma pena que o Death Note original carregue o mesmo nome do seu filme, que nada tem a ver com a sua história. Sem diálogos inteligentes, personagens bem construídos e divisão de opiniões, o que a Netflix trouxe foi um filme de sessão da tarde, sem compromisso algum, que pode ser visto como uma agressão para os antigos fãs.
O lado bom disso tudo é que, agora, quando sua família quiser assistir algo novo, você pode perguntar: “querem ver algo sério ou só para dar risada?”. Se quiserem o primeiro, coloque o anime, e se preferirem o último, coloquem o filme. Ao menos agora existe um Death Note para todo mundo.