Para os que acompanham os acontecimentos relacionados a jogos e videogames na internet, podemos comparar as últimas semanas a mais baixa revista de fofocas que você poderia ler. Chegamos ao ponto onde o relacionamento de uma desenvolvedora de games, o ataque e divulgação de informações pessoais de outro desenvolvedor, e a revolta e ameaça de morte de uma pesquisadora foram os assuntos mais comentados ultimamente pela comunidade gamer.
Partindo de um grande número de opiniões sobre tudo isso, é fácil se perguntar do que está acontecendo. A resposta é mais simples do que você imagina.
A comunidade gamer está cada vez mais babaca.
Me desculpe se eu te ofendi com esse comentário. Assim como você, que está lendo essa reflexão em forma de texto, eu também me sinto ofendido. Estou partindo do conceito que, se eu jogo e consumo videogames, isso me torna um gamer, não mais e nem menos que você – mesmo concordando sobre o que já foi falamos anteriormente aqui. Mas o comportamento de muitas pessoas dentro do que chamamos de comunidade está cada vez mais preocupante, tudo por conta de diversos fatores que nos envolvem diariamente nos vários meios que vivemos e interagimos.
No começo de agosto, a desenvolvedora Zoe Quinn foi alvo de uma situação extremamente delicada na qual o seu ex-namorado a acusava de traição com cinco homens da área de games, sendo um deles do Kotaku, com o objetivo apenas de se auto favorecer/promover e garantir que seu mais recente jogo Depression Quest tivesse boas reviews. O próprio Kotaku nunca publicou uma review do jogo, diga-se de passagem. Porém, a vida sexual de Quinn foi o suficiente para questionar a ética de trabalho principalmente no jornalismo de games, e o assunto, que virou manchete em diversos portais internet afora, desencadeou uma série de perseguições, ameaças de estupro e morte, a invasão de seu tumblr e a divulgação de arquivos pessoais (incluindo fotos dela nua) na internet. Mesmo sob a sombra de especulações e o debate sobre moralismo e ética, a perseguição ainda continua com direito a telefonemas a seus familiares e amigos. Nem vamos falar dos inúmeros xingamentos à ela em fóruns e redes sociais. A maioria, obviamente, de forma anônima.
Solidarizando pelo acontecimento, o criador de Fez, Phil Fish, também foi alvo desse comportamento babaca. Ao defender Quinn em relação às constantes ameaças e difamações, Fish teve suas contas hackeadas e diversos documentos – desde senhas pessoais a documentos de sua empresa, a Polytron – que foram distribuídos pela rede. Phil Fish pode não ser (e não é) a figura mais simpática do desenvolvimento de jogos, mas apenas por defender uma posição em que solidarizava com a colega de profissão foi extremamente criticado e exposto gratuitamente, sem nenhuma necessidade desta retaliação. Vale lembrar que o 4chan é acusado das situações, assim como responsável em hackear e divulgar tais informações.
Anita Sarkeesian, responsável pela pesquisa que originou a série de vídeos Tropes Vs. Women in Videogames, foi outro caso de retaliação na internet. Sarkeesian há anos sofre os mais diversos tipos de ameaças por conta de seu projeto (e de seu blog Feminist Frequency), cujo objetivo é analisar como as mulheres são retratadas nos videogames e transformá-las em uma websérie de documentários, antes mesmo de ela sequer existir. Ela já sofria críticas e ameaças durante sua campanha no Kickstarter (uma das mais bem sucedidas do site) arrecadando mais de 150 mil dólares quando o projeto pedia apenas 6 mil. Após lançar na última semana um dos seus vídeos, Sarkeesian foi duramente criticada e ameaçada, e isso a levou a sair de sua casa por preocupação com a sua própria segurança.
Dando os nomes aos bois, os três exemplos mostram o quanto as pessoas estão cada vez mais problemáticas quando o assunto é videogame. Eu cresci jogando no meu computador e nos videogames de familiares e amigos (e nos poucos consoles que tive), e hoje consumo esse produto por ser meu entretenimento favorito. Independente da época ou da idade, videogames sempre me aproximaram de inúmeras pessoas no decorrer da minha vida, e já passei horas e horas me divertindo com eles. Obviamente já participei de incontáveis discussões, mas com o advento da internet, o acesso a esse tipo de entretenimento vem demonstrando uma faceta dos jogadores – vamos chamar de gamers – que vem deixando essa comunidade mais obscura, mais estranha, mais – me desculpe, novamente – babaca.
Não é de hoje que situações como essas apresentadas acontecem por aí. Ameaças, invasões e divulgação de dados pessoais acontecem há tempos, “desde que o mundo é mundo” – vide o caso das fotos vazadas de Jennifer Lawrence e de mais outras 100 atrizes. Mas a proporção que atos semelhantes a esse causam dentro desse meio é extremamente contagioso e venenoso, e cada vez mais perigoso. A questão é: o que ganhamos com isso?
Assim como Anita Sarkeesian e Zoe Quinn, muitas mulheres sofrem quase que diariamente algum tipo de abuso simplesmente por jogar videogames, seja um xingamento, seja uma ameaça, seja mandando ir pra cozinha me fazer um sanduíche, seja falando a estúpida “tits or GTFO” (mostre os peitos ou dê o fora daqui). Não é novidade nenhuma que o machismo ainda é muito forte nessa cultura, mesmo quando praticamente metade do público que consome videogames é mulher – parte disso é culpa da própria indústria, que insistia em dizer que videogame é coisa de menino, lembram?
E quando algumas mulheres ganham espaço para expor suas opiniões e ideias que condizem tanto com uma proposta de igualdade, ou de conceitos novos para os videogames, uma enxurrada de ataques acontecem sob outras alegações. Quantos criticaram a desenvolvedora e chegaram a procurar pelo seu jogo Depression Quest? Não é difícil ler comentários por aí dizendo “ele nem é um jogo”.
Sejamos sinceros: precisamos mesmo nos importar com a vida sexual de uma desenvolvedora de jogos? Sem contar a misoginia e ódio gerado por aqueles que, sem ao menos contestar a sua veracidade, a julgaram por uma situação com que ninguém deveria se importar. Afinal, a vida de uma pessoa é problema dela e de mais ninguém. Veja bem, isso é senso comum.
Outros casos recentes também chamaram a atenção, inclusive da mídia global, enaltecendo ainda mais esse comportamento babaca. Enquanto um jogador de Littletown, Colorado, exibia através de seu canal do Twitch uma partida de Counter-Strike: Global Offense, uma equipe da SWAT invadiu o seu apartamento após uma denúncia anônima de uma suposta ameaça terrorista. Tudo para fazer uma brincadeira ao jogador. Antes, em Fevereiro, a SWAT também invadiu a casa de outro jogador após uma denúncia. Um jogador perdeu em uma partida online e, como vingança, rastreou o endereço IP do então vencedor e passou um trote para a polícia.
Qual o sentido disso? Em nenhum momento essas pessoas não pensaram no que poderia acontecer de pior com esse ato? Qual a graça de movimentar uma equipe de policiais a uma grande mentira? Não aceitamos mais perder em uma partida de videogame?
Uma das situações mais comuns em partidas online é a forma como os próprios jogadores são tratados pelos outros. Em uma das minhas primeiras partidas de League of Legends, por exemplo, fui hostilizado por um jogador do meu próprio time simplesmente por derrotar um oponente. Precisamos tanto nos afirmar como melhores, o tempo todo? Precisamos hostilizar, xingar, e ameaçar? O que ganhamos com essas atitudes? Até mesmo PewDiePie, o gamer mais popular do YouTube, fechou os comentários para o público por não aguentar mais o número absurdo de comentários com provocações e outras bobagens.
Videogames hoje é uma das maiores fontes de imaginação e diversão, e não há nada que se compare a isso. O problema é que a maioria dos jogadores vivem dentro de uma espécie de bolha criada apenas com suas próprias fantasias, e a tornam uma válvula de escape da realidade onde podemos ser e fazer o que quiser, sempre com a certeza de tentar novamente – e então perdemos a real noção da realidade. E quando algumas pessoas aparecem com ideias diferentes do que está acostumado, a maioria tende a ir contra, não aceitando uma mudança. Mas porque tememos tanto por isso, quando boa parte da comunidade reclama da falta de inovação de diversos títulos, sempre alegando que “esse jogo segue a mesma fórmula de outro jogo, e por isso é ruim”? Se queremos tanto realismo nos jogos, precisamos pensar na igualdade, e não em gráficos incríveis. E acredite: os desenvolvedores estão ouvindo isso, e você não deveria encarar como um ameaça à sua bolha de fantasias.
Eu continuo me perguntando o que está acontecendo com a comunidade gamer. Estamos tão preocupados em não aceitar novas ideias, novos conceitos, novas pessoas participando desse ambiente, e insistimos em ser conservadores no que tanto gostamos que em qualquer sinal de mudança mostramos o que há de pior em nós. Somos preconceituosos, invasivos, racistas, e as julgamos por sua condição social, sexualidade, etnia – em resumo, o que deveria aproximar a comunidade simplesmente afasta.
Os três casos mostram muitos de nós e como essa cultura dos jogos está extremamente doente. Não se trata simplesmente de Anita Sarkeesian, Zoe Quinn ou Phil Fish. Se trata de pessoas assim como você, e por mais que tenham opiniões, idéias e escolhas pessoais, não te dá razão de ser um covarde, que prefere xingar e ameaçar em vez de ouvir suas opiniões e aceitá-las. Se trata de bom senso. Todas as mudanças são bem vindas. Em um ambiente mesmo que competitivo precisamos ter novas idéias, precisamos questionar, precisamos aceitar, precisamos abrir a mente. E se você preferir pensar diferente, meu amigo, – desta vez não vou me desculpar – você é um completo babaca.