Depois da meia decepção com a segunda temporada de Demolidor, foi com algum ceticismo que comecei a ver Luke Cage. Diferente das séries anteriores da Netflix, Jessica Jones e Demolidor, eu tinha um conhecimento prévio nulo a respeito do personagem. Li umas poucas participações suas em revistas dos Vingadores, vi-o como coadjuvante em Alias, mas nada além disso. Por um lado, eu tinha pouco valor afetivo. Por outro, não peguei metade das referências.
E embora algumas pessoas torçam o nariz para esse tipo de postura, penso que é importante demonstrar de onde estou falando. Equilibra as expectativas. Esse não é um texto no qual eu traço paralelos com origens que antecederam enredos nos quadrinhos (como fiz com Jessica Jones), mas sim no qual pretendo me debruçar sobre a produção da série enquanto produto isolado. Afinal, não esperem que apenas leitores de quadrinhos dos anos 70 tenham propriedade para falar dos recentes produtos de super-heróis disponíveis: os filmes e seriados estão atingindo um público muito maior do que esse.
Luke Cage conta a história do personagem com uma pele invulnerável, meses depois dos eventos passados em Jessica Jones, tentando se estabelecer um perfil discreto no bairro do Harlem. Fazendo trabalhos menores, bicos de lavador de pratos e faxineiro de uma barbearia, ele tenta seguir em frente com uma vida pouco extraordinária apesar de suas habilidades. Mas é claro que a jornada do herói bate na sua porta (melhor dizendo, tromba com ele na saída de um de seus empregos) e ele, de maneira relutante, se vê envolvido em uma trama que envolve gângsteres megalomaníacos, uma polícia ora repressora, ora atada por regras e sistemas, e alguns detalhes de seu passado.
A série já havia me ganhado na abertura. Apesar de simples (as placas das ruas do Harlem sendo refletidas na pele invulnerável de Cage), ela já demonstra uma espécie de estética que seria adotada no seriado: o uso dos espaços públicos, os nomes de figuras históricas negras, e a relação que um homem tenta construir com uma comunidade específica. Isso sem falar, claro, na música. Eu, que não entendo nada de particular em música – minha relação se limita a ouvir algo, gostar ou não, deixar um tempo no celular e seguir em frente – consegui perceber que há uma intimidade do seriado com ela. Claro, com uma cultura tão cheia de nomes proeminentes na indústria musical, nos mais variados estilos (jazz, soul, blues e hip hop, só para citar alguns), não poderia ser diferente.
Há quem diga que o ritmo narrativo é lento, talvez porque se esperasse mais ação. No entanto, creio que uma palavra para melhor descrever é que a narrativa é bem dosada. Não que isso a isente de problemas e inconsistências de roteiro, mas diferente de Jessica Jones, os episódios parecem ser pensados como episódios. Eles avançam a trama, ora mais, ora menos, mas conseguem ser auto contidos. E isso, em tempos de Netflix, é muito importante: Luke Cage não parece ter sido pensada como um filme muito longo de treze horas, mas sim como uma narrativa que se constrói paulatinamente, apresentando seus elementos, dando tempo para os personagens e o espectador se aclimatar.
As cenas de ação, por seu turno, não deixam a desejar. As coreografias podem não ser tão bem trabalhadas quanto as de Demolidor (impossível evitar as comparações, visto que todas fazem parte de um grande projeto, que é o seriado dos Defensores), elas interagem lindamente com os cenários. Vemos paredes quebradas, carros destroçados, janelas espatifadas. Os poderes de Cage ganham impacto visual, sem o uso já batido da câmera tremida. Mais de uma vez, Luke usa seu corpo como escudo – uma simbologia forte, quando se tem no mesmo universo um super soldado portando uma estrela como tal.
Símbolos permeiam todo o seriado: moletons com furos de balas (e as incontáveis vidas negras perdidas associadas a eles); pinturas em paredes; cabelos com diferentes cachos. Se Matt Murdock se cerca de cruzes e igrejas, de sombras que são indiferentes para ele, Luke Cage reclama espaços e cenários que passam a ser ressignificados pelos eventos da série. Criam-se recorrências visuais que Jessica Jones parece ter falhado em fazer.
O destaque maior, porém, vai para a escrita de personagens. Luke Cage entrega ótimas atuações de seus coadjuvantes – de modo que até ofuscam o protagonista de Mike Colter – e vários personagens com arcos de evolução. Cornell Stokes (ou Cottonmouth) é humanizado através da música, enquanto sua prima Mariah Stokes é escrita como uma personagem complexa, ambivalente e desenvolvida. O mesmo se pode dizer de Misty Knight: ambas mulheres que enfrentam situações difíceis e aprendem muito sobre si mesmas no processo. Claire Temple, personagem coringa dos outros seriados, ganha mais tempo de tela e se apresenta de maneira mais completa, dando indícios de seu futuro papel na junção do futuro grupo dos Defensores.
Outros coadjuvantes ganham seu momento sob o holofote: Shades, o capanga com ambições próprias de subir no crime organizado, também é tratado de maneira ambivalente. Scarfe, que poderia se passar pelo policial de meia-idade genérico, tem uma interessante dinâmica com sua parceira Misty, e é humanizado. Todos esses personagens contam algo de suas histórias sem cair em exposições enfadonhas, e em conjunto com os outros elementos da série, constroem um cenário mais sólido para as produções vindouras da Marvel. Mesmo Reva, a falecida esposa de Cage, é trabalhada de maneira póstuma. Se há algum problema, porém, é a demora de Luke de se conectar com o seu público: até mais da metade da série, sabemos apenas como ele teria ganhado seus poderes. Mas quem ele era antes disso?
Personagens bem escritos também acabam atuando como importantes espelhos de representação. Diferente de vários outros produtos culturais, vemos em Luke Cage diferentes pessoas negras, vilanizadas ou não, agindo conforme seus próprios desígnios. Uma cena em específico salta aos olhos: em uma sala de delegacia, quatro mulheres negras, de personalidades e motivações completamente diferentes entre si, discutem fatos que ricocheteiam (perdoem o trocadilho) Cage, mas que falam sobre outra coisa muito mais importante: a violência policial em relação à juventude negra.
Não se deixe levar pela saturação nos produtos audiovisuais de supers: Luke Cage pode não ganhar prêmios, mas não faz feio em relação a outras séries de super heróis. Bem escrita, entrega personagens acreditáveis, transições de cena muito criativas e um cenário mais sólido que as suas sucessoras, e uma interessante quebra de tabus sobre a cultura negra.