Os consoles da Sony foram as plataformas tradicionais de JRPGs nos últimos tempos, pelo menos até esta geração de videogames, na qual se viu um hiato do gênero, com uma baixa quantidade (e qualidade) de títulos. No entanto, os JRPGs começaram a retornar à cena há alguns anos, e conforme o PS3 entra em sua reta final, o console tenta retomar o posto que era de seus antecessores. No meio deste processo, o maior símbolo deste ressurgimento é Ni no Kuni: Wrath of the White Witch, um game “exclusivo” para o console da Sony que surgiu da parceria entre a desenvolvedora Level 5 e o Studio Ghibli, que produziu renomados animes, como Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro, o vencedor do Oscar de Melhor Animação em 2002.

Mas peraí, “exclusivo” do PS3?  Pois é, há outro Ni no Kuni para o Nintendo DS, lançado em 2010, e a versão do PS3 é uma espécie de remake, embora os dois tenham sido lançados no Japão com menos de um ano de diferença. Apesar do sucesso, a Level 5 decidiu não trazer a versão do DS para o Ocidente, usando como justificativa o fato que o game acompanhava um livro com mais de 300 páginas, o Wizard’s Companion, que é utilizado pelo jogador, e traduzi-lo para o inglês seria um trabalho complicado e caro. Assim, isso só foi possível na versão do PS3, que contém o livro em formato digital dentro do jogo (embora o livro impresso esteja presente na Edição de Colecionador), além de gráficos renovados e algumas alterações na história (com a inclusão de novos elementos) e na mecânica do jogo.

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E das alterações no remake, se há algo que Ni no Kuni explorou bem na transição para o PS3 foi mesmo o potencial gráfico. O visual do jogo é formidável, com os belos traços típicos da animação do Studio Ghibli. Todos os personagens são bem desenhados e cada cidade é extremamente detalhada e diferente uma da outra, indo do oásis de Al Mamoon ao cenário steampunk de Hamelin, e da bucólica Ding Dong Dell à movimentada floresta de The Fairyground. Este aspecto revive o prazer dos JRPGs antigos de se viajar rumo a uma cidade nova, gerando ansiedade para conhecer todas as peculiaridades do novo local. Mas, acima de tudo, numa época em que se valorizam demais gráficos ultrarrealistas, Ni no Kuni é um lembrete de que não é necessário realismo para ter um belo visual. Basta lembrar, usando os exemplos de Final Fantasy 6 e 7, qual dos dois possui gráficos que resistiram melhor à passagem do tempo.

Nada acompanha melhor um bom visual do que uma bela trilha sonora, e Ni no Kuni também não decepciona neste quesito. Embora as músicas de Joe Hisaishi não atinjam o nível de grandeza visto no trabalho de compositores consagrados como Nobuo Uematsu (série Final Fantasy, Chrono Trigger, etc) ou Yasunori Mitsuda (Chrono Cross, Xenogears, etc), elas são executadas de modo magnífico pela Orquestra Filarmônica de Tóquio, adequando-se a cada cenário ou a cada momento da história. A trilha pode ser repetitiva às vezes, mas confesso que mais de uma vez me peguei assobiando o tema principal do jogo enquanto corria pelos vastos campos do world map.

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Contudo, o grande destaque do departamento sonoro fica mesmo para a atuação de voz dos personagens. O jogo, lançado no Japão no fim de 2011, apenas chegou ao Ocidente no começo de 2013, e a Level 5 justificou o atraso porque a empresa queria fazer um bom trabalho na tradução (e o jogo tem bastante texto). E se este foi mesmo o motivo da demora, a espera valeu a pena. A dublagem dos personagens é excelente, cada um com seu próprio estilo e sotaque (com destaque para o sotaque galês do “Mr. Drippy”, que vai garantir algumas boas risadas). Talvez a atuação mais fraca seja a do protagonista, Oliver, especialmente quando ele entra em batalha, mas é ainda de alto nível. E se por algum motivo a dublagem em inglês não agradar (embora isso seja bem difícil), é possível mudar para o áudio original em japonês.

E, é claro, tudo isso é beneficiado por ótimos diálogos e uma qualidade formidável do texto. É muito interessante ver como os habitantes dos diferentes locais do mundo de Ni no Kuni têm suas particularidades ao se comunicar, seja na fala misturada ao ronronar dos grimalkins em Ding Dong Dell, ou no uso de algumas palavras em espanhol dos moradores das montanhas de Perdida, uma clara alusão ao povo andino. E a criatividade não para por aí: se o rei da cidade é um grande felino, nada mais justo que o chamem de “His Meowjesty”. Se a rainha da cidade no oásis parece uma vaca, ela é “Her Moojesty”, ou ainda a “Cowlipha”. É original, divertido, e poucos jogos de qualquer gênero conseguem uma qualidade de texto tão elevada, ainda mais quando traduzido de outra língua.

Agora, alguns devem estar pensando: “peraí, um gato que é rei, e uma vaca que é rainha? Ah não, esse jogo deve ser infantil demais!” Soa mais infantil do que é na realidade. Ainda assim, infantil não significa que seja bobo. Se você conhece o trabalho do Studio Ghibli, sabe bem do que estou falando. A história começa com Oliver, um garoto de 13 anos que mora em Motortown, uma cidadezinha que lembra o interior dos EUA lá pelos anos 1950. Um dia, ao sair escondido da mãe para testar o carro que seu melhor amigo criou, ele se envolve em um acidente e cai no rio. A sua mãe, ao acordar no meio da noite e ver que ele não está em casa, sai em sua busca e pula no rio para salvá-lo. Ela consegue resgatar o filho, mas logo em seguida passa mal e vem a falecer. Resultado: a sua irresponsabilidade causa a morte de sua mãe. Não parece tão infantil agora, não é mesmo? Após dias se sentindo culpado e deprimido, as lágrimas do choro incessante de Oliver dão vida ao boneco, que foi presente de sua mãe, chamado Drippy, ou como ele gosta de se chamar, “the Lord High Lord of the Fairies”, uma fada totalmente fora do convencional (esqueça a Navi de Zelda!). Ao voltar à vida, ele conta que vem de outro mundo que está em grande perigo, e que se Oliver fosse com ele para tentar derrotar o vilão Shadar, talvez houvesse uma chance de salvar a sua mãe. Estes são apenas os 15 primeiros minutos do jogo, e assim começa a grande jornada de Ni no Kuni.

De fato, o aspecto mais relevante de qualquer JRPG é a história, e este é um ponto muito forte do jogo. Não se trata apenas de uma jornada para salvar a sua mãe, mas é uma história, essencialmente, de superação e redenção. Oliver se aventura num mundo fantástico como uma forma de fugir da realidade que o assombra, da culpa que o atormenta, e assim ele passa o tempo todo tentando ajudar os outros com os seus problemas quando, na verdade, é ele quem mais precisa ser ajudado. Isto não é tão claro de imediato, mas você vai percebendo ao longo do jogo e simpatizando cada vez mais com a causa dele. O único defeito na história é a parte adicional de mais ou menos 5 horas no fim do jogo que foi adicionada à versão do PS3. Ela parece meio deslocada, e embora esclareça várias questões, fica corrido e faria mais sentido se o jogo tivesse acabado antes.

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E além de derrotar o vilão, como Oliver pode ajudar os outros? Bem, um problema que está ocorrendo no mundo de Ni no Kuni é que as pessoas estão ficando de “coração partido” por influência de Shadar. Não é o que você está pensando: muitos dos habitantes que você encontra pelo caminho estão perdendo algumas virtudes em seus corações, como entusiasmo, coragem, gentileza, etc. Para consertar isso, Oliver precisa encontrar outras pessoas que tenham essas virtudes de sobra, retirando delas com a sua magia para dar àqueles que as necessitam. É algo bem simples, e boa parte das side quests do jogo consiste em “consertar” o coração das pessoas, o que providencia uma distração da história principal. Outras side quests vão incluir a busca de itens, a captura de alguns familiars e até mesmo os clássicos “bounty hunts”, que implica matar alguns monstros mais fortes. Não é necessário fazer nenhuma delas, mas as recompensas valem a pena, e cada vez que você completa uma, você ganha carimbos em cartões chamados “merit cards”, que podem ser trocados nas lojas por diferentes (e úteis) habilidades especiais.

E falando em familiars e monstros, resta falar do sistema de batalhas, e este talvez seja o ponto mais fraco de Ni no Kuni. É uma mistura do sistema encontrado na série Star Ocean e Tales, no qual você pode circular livremente pelo campo de batalha, e o da série Pokémon, no qual você captura os monstros com os quais você luta. Estes monstros capturados se chamam familiars, e é com eles que você lutará na maior parte do tempo, embora você também possa controlar os personagens principais, que são úteis apenas por habilidades específicas ou, no caso de Oliver, pelas magias. Você pode comprar ou encontrar o equipamento para seus familiars, ou ainda criá-lo por meio de alquimia, como em Star Ocean; e, assim como em Pokémon, os seus familiars evoluem ao ganhar experiência até poderem se transformar numa forma mais forte com o uso de um item. O problema é que o jogo não te incentiva tanto a trocar os familiars que você pega logo no começo. As diferenças entre um e outro não são tão claras até você evoluí-lo bastante, e é possível utilizar os mesmos do começo ao fim sem grandes problemas, apesar de não serem os mais fortes. Você também pode dar comida a eles para melhorar seus atributos, mas é uma mecânica totalmente dispensável, com diversas limitações que só torna o processo chato.

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Mesmo na batalha, as coisas não funcionam tão bem, pois tudo é um pouco caótico. São muitos botões que você pode utilizar para fazer uma coisa ou outra, o que pode te confundir, enquanto em muitas vezes será preciso apenas apertar X repetidamente para atacar o inimigo sem parar. Outro problema é que só é possível controlar um personagem por vez, então não é incomum se irritar com a inteligência artificial dos seus companheiros, que gastam MP de forma adoidada, que parecem estar ansiosos para morrer ao correrem em direção a um monstro que se prepara para um forte ataque, ou ainda quando um familiar não consegue atacar o inimigo porque outro está na frente, e ele simplesmente não dá a volta automaticamente. Na maioria das vezes, dá para relevar esses problemas, mas morrer por causa da inteligência artificial de seus companheiros e familiars é para perder os nervos. As batalhas se tornam mais interessantes contra os chefes, nas quais você terá que explorar estratégias específicas, atacando com força total num momento, se defendendo em outro, usando um tipo de magia para enfraquecê-lo, etc, tudo auxiliado pelos conselhos de Drippy. Mas se o sistema de batalhas não é perfeito, ele não chega a ser chato ao ponto de tirar o brilho do jogo. Os combates são rápidos, as dungeons não são muito longas, e o jogo flui de forma agradável, sem deixar que você se incomode demais com essas limitações.

No fim das contas, Ni no Kuni não é revolucionário como alguns dos clássicos do SNES ou PSX, mas certamente se coloca entre os melhores JRPGs de sua geração. É possível terminá-lo em 40 a 60 horas, dependendo do seu empenho em fazer as side quests, mas a vontade ao jogá-lo é de que o mundo fantástico de sua história não acabe nunca. A Level 5 anunciou que pensaria em uma sequência se o jogo vendesse bem no Ocidente, e como os números iniciais foram positivos, vamos torcer para que eles realmente considerem a ideia. Até lá, se você gosta de JRPGs, não se intimide pelo fato do jogo parecer infantil. Se você não tem familiaridade com o gênero, é muito fácil se atrair pelo belo visual e pela história cativante. De qualquer modo, a realidade é que Ni no Kuni: Wrath of the White Witch é um excelente jogo, que deve se manter entre os melhores de 2013, mesmo tendo sido lançado logo no começo do ano. E, mais do que tudo, Ni no Kuni é um lembrete que tanto o PS3 quanto os JRPGs ainda têm muito fôlego para impressionar.

 

Trailer de Ni no Kuni: Wrath of the White Witch: