Um dos aspectos mais celebrados da internet é a pluralidade de vozes que o baixo custo e facilidade de publicação de conteúdos na rede proporciona. Internautas usam blogs, redes sociais e canais de YouTube para expressar suas vivências e se aproximarem. Antes da web, produzir e distribuir conteúdo multimídia era caro e demandava muito conhecimento técnico. Atualmente, bastam um smartphone e uma conexão. Porém, mesmo após a popularização da internet, por muito tempo o cenário ainda era proibitivo para quem quisesse desabafar em forma de games. Era, porque os indies e a distribuição digital estão felizmente mudando essa realidade.

Recentemente li o excelente Rise of the videogame zinesters, livro da  teórica e game designer Anna Anthropy. O título cita as zines, publicações independentes feitas por leigos que as distribuíam livremente,à margem das grandes editoras, e faz um paralelo entre essas revistas e os games independentes.  Nessa obra, Antrhopy define jogo como uma experiência determinada por regras. Ela ressalta que “a experiência que nós chamamos de jogo é criada pela interação entre diferentes regras, mas as regras em si não são o jogo, a experiência é!”. Anthropy é uma mulher transexual e homossexual que encontrou nos games uma forma de expressar as suas vivências como minoria em uma sociedade que a discrimina. Seus textos convocam os jogadores a fazerem o mesmo, criando os próprios jogos.

Ela defende que justamente por ser os jogos experiências conduzidas por regras, seriam poderosas ferramentas para a expressão pessoal: o game designer só precisa traduzir sua vivência em regras que possam fazer o jogador lidar com as mesmas limitações que o desenvolvedor vive em seu cotidiano. A experiência do game seria uma expressão da experiência do game designer, tornando o jogo um canal de empatia entre autor e público. O mercado de games indie já emplacou produtos de sucesso com essa abordagem. Exemplos recentes são os dois preferidos nas categorias “Melhor game indie” e “Melhor jogo de PC” do VGX 2013, maior premiação do mundo dos games: os jogos Gone Home e Papers, Please.

Gone Home, o vencedor nas duas indicações, é uma experiência interativa em que o jogador encarna uma jovem de 23 anos que, após passar um ano viajando pela Europa, volta para a casa de sua família nos Estados Unidos e a encontra vazia, com vários bilhetes de sua irmã de 17 anos sugerindo uma fuga e explicando seus motivos. O gamer é confrontado com o ambiente familiar de uma casa povoada de referências ao universo de Sam, a irmã mais nova, sendo conduzidos a enxergar aquele mundo pelos olhos dela. Muitos jogadores relatam terem chorado ao completar o jogo, emocionados com a narrativa das vivências de Sam. O game é extremamente eficaz em, através de interações simples e próximas das ações cotidianas, criar entre jogador e personagem a conexão que a narrativa cria entre as irmãs.

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Em Gone home o objetivo é explorar as memórias de Sam

Papers, please tem outra abordagem para aproximar o jogador da vivência do personagem. Nele o gamer é um funcionário da imigração na fronteira da fictícia nação Arstotzka, e deve zelar para que não entrem elementos indesejados no país. As regras são arbitrárias e mudam diariamente, o trabalho é repetitivo e cansativo e, ao errar, o jogador é punido com descontos no salário recebido ao fim da jornada. Esses descontos são elementos centrais na dramaticidade do jogo: ao receber o salário, você deve fazer escolhas difíceis como entre comprar comida para seu bebê faminto ou remédios para sua esposa doente. Nesse momento do game, qualquer desconto na jornada faz muita diferença. Pressionado pelo trabalho enfadonho e pelo medo das punições, o jogador é confrontado com habitantes implorando, com razão, para sair ou entrar no país e deve se fechar ou ceder às suas narrativas trágicas, sempre com consequências. A pressão das escolhas e o cansaço da jogabilidade repetitiva apelam para a empatia do jogador, que passa a sentir compaixão e identificação com o funcionário da fronteira.

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Em Papers, Please, o jogador vivencia o dia a dia cansativo e os dilemas éticos de um funcionário da fronteira

Games como esses têm se multiplicado pelas redes de distribuição digital e conquistado um público fiel, atraído pelas histórias profundas e pela narrativa jogável. Até mesmo a predileção por gráficos de última geração, tão conhecida entre os gamers, tem sido deixada de lado em relação a uma narrativa empática e bem construída. To the moon, por exemplo, é um grande sucesso indie desenvolvido totalmente em RPG Maker, um editor acessível mesmo para pessoas sem conhecimento técnico na área.

Além do surgimento de um nicho voltado para narrativas mais ligadas a experiências cotidianas dentro dos games, outra consequência da percepção do potencial para a criação de empatia dos jogos eletrônicos é o crescente número de gamers que estão desenvolvendo e publicando jogos como expressão de suas vidas e opiniões. Um dos maiores sites de games online, o Click Jogos, ligado ao portal UOL, conta com uma sessão de games políticos onde podemos encontrar, entre outros, o jogo V de vinagre, que aborda as manifestações populares de junho de 2013. Nele, a experiência dos manifestantes com a polícia é exposta através do objetivo do game: fugir das tropas de repressão policial.

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SUS: The Game: drama real pode virar desafio do game e passar uma mensagem

Outro produto brasileiro na mesma linha é o jogo SUS: The game , em que o jogador controla um paciente em um hospital público brasileiro, com a missão de encontrar um médico antes de morrer. Levar o jogador a explorar o hospital correndo contra a barra de energia que se esgota rapidamente foi a forma jogável que os autores encontraram para reproduzir a angústia de um paciente que espera pelo atendimento.

Além dos exemplos citados é possível encontrar muitos outros abordando desde experiências traumáticas como o estupro, momentos  marcantes e difíceis como a “saída do armário” em Coming out simulator (baseado na experiência real do autor) ou crítica social, como o caso do jovem amarrado em um poste por “justiceiros” no Rio de Janeiro . Nesses últimos, é notável a simplicidade dos jogos, tão distante dos padrões grandiosos da indústria do videogame. O surgimento de games assim entre usuários da rede mostra um aumento na percepção dos games como linguagem para a expressão de vivências e geração de empatias. Com a popularização de editores acessíveis a pessoas sem conhecimentos de programação, é possível que cada vez mais vejamos internautas que hoje postam suas ideias em vídeos e imagens, afirmando “vou fazer um game sobre isso”.