O cenário se repete a cada crime violento cometido por jovens: durante a intensa e muitas vezes sensacionalista cobertura jornalística da tragédia, algum veículo descobre que o criminoso era fã de alguma franquia de videogame, geralmente envolvendo FPS ou cenário de conflito. Isso basta para que videogames em geral sejam acusados de serem os motivadores do comportamento do jovem acusado e, por extensão, da corrupção e decadência da juventude atual.
Foi muito difícil escrever o trecho acima sem bocejar. Imagino que todo gamer já teve que defender seu hobby de acusações do tipo em algum momento – a equipe do Bonus Stage inclusive gravou um podcast sobre o assunto. Você provavelmente já argumentou que também gosta de Assassin’s Creed, Doom e GTA e nem pensa em matar ninguém. As acusações são tão constantes que no último episódio em que elas se repetiram os gamers brasileiros chegaram a criar um Tumblr ironizando o absurdo desses argumentos.
Games são extremamente populares entre os jovens atuais porque praticamente todo mundo dessa faixa etária cresceu em contato com eles. É difícil encontrar um adolescente de classe média que não jogue, criminoso ou não. Se um desses jovens comete um crime, é quase tão certo que a polícia encontrará videogames entre seus pertences quanto calças jeans, mas calças jeans nunca são acusadas de incentivarem comportamentos violentos.
Ok, eu sei que foi uma comparação exagerada. Mas realmente, levando em conta as vendas de videogames do momento, se eles realmente fossem determinantes sozinhos para a adoção de comportamentos violentos os números de tais crimes seriam muito maiores. Pesquisas científicas também têm sido inconclusivas ao estabelecer essa relação, preferindo afirmar que dificilmente um comportamento tão extremo como o criminoso seria desencadeado por um único fator.
Mesmo assim, a polêmica continua, e a crença popular na influência maléfica dos games, também. Por quê? É possível enumerar algumas razões que levam as pessoas a terem esse tipo comportamento em relação aos games, entendê-las e, quem sabe, conseguir convencer alguém na próxima discussão sobre o assunto.
1. As mídias mais novas geralmente são culpadas pelas ocorrências mais velhas da sociedade
Você provavelmente teve aquela aula de literatura sobre Madame Bovary ou sobre O Primo Basílio no colégio. Caso sim, deve se lembrar do tema dos dois livros: jovens fúteis adotam comportamento devassos influenciadas pela leitura de romances libertinos.
Hoje os livros são glorificados e máximas do tipo “Desligue o videogame/televisão/qualquer-equipamento-digital e vá ler um livro” são o suprassumo do clichê da crítica vazia aos meios digitais. Mas quando os romances eram relativamente novos, foram culpados por comportamentos adúlteros das mocinhas da literatura. Isso em um contexto onde os casamentos eram arrajados, os homens infiéis e ausentes e as moças ociosas. Por mais óbvio que nos pareça que esse tipo de ambiente nem precisava de um incentivo extra para traição conjugal, a sociedade da época se apressou em culpar os livros.
Fotografia, televisão e cinema também passaram por acusações parecidas. A fotografia foi acusada por diversos intelectuais da época de seu surgimento, inclusive o poeta francês Baudelaire, de destruir a arte e a genialidade, pois ingenuamente se acreditava que para fazer um bom trabalho fotográfico bastava disparar a câmera. A televisão e o cinema foram acusados de “alienar as massas” e promoverem comportamentos passivos e boçais, e hoje em dia ninguém questiona o valor artístico do cinema e a qualidade de certas produções televisivas.
Enfim, culpar meios externos é uma forma que a humanidade sempre encontrou de aliviar a perplexidade sentida ao encarar seus próprios males. O mesmo ocorreu em relação aos jovens: procure ler o que era dito dos adolescentes da década de 50 e você irá descobrir que não é muito diferente dos artigos atuais sobre a geração Y. A verdade é que se fazia sexo e matava muito antes do funk proibidão e de Call of Duty. Mas ainda é assustador para muitas pessoas encarar isto. O que nos leva ao segundo motivo.
2. Os games fazem parte da cultura, e a cultura é violenta
Na HQ Sandman, escrita por Neil Gaiman, os personagens Caim e Abel são apresentados como os participantes da “primeira história”. Embora isso seja uma licença poética de Gaiman que contempla apenas a cultura judaico-cristã, é um exemplo claro de como a nossa cultura é violenta desde seus mitos originais.
Seja nas assustadoras versões originais dos contos de fadas; nos heróis de HQ com suas primeiras versões surgidas nas décadas de 30 e 40; no cinema noir do pós guerra; nas barbaridades “cult” do cinema exploitation e nas temáticas violentas das séries de TV atuais, a verdade é que mortes, guerras e sanguinolência não são exatamente novas na história da ficção humana.
Os games surgiram nesse contexto cultural e se apossaram dos seus temas: o game FPS de guerra é “parente” dos filmes de guerra. God of War é ligado aos violentos épicos mitológicos, como o clássico A Odisséia. Rome Total War nada mais é que a simulação de guerras de conquistas, tão recorrentes na História.
A violência não é uma invenção dos games e nem está ausente de outras mídias. Porém, parece ser mais constante em produções mediadas por joysticks. Acredito que pela próxima razão de nossa lista.
3. A violência é uma ‘solução fácil’ de game design
A crítica e designer de games Anna Anthropy, em seu livro Rise of Videogames Zinesters, critica duramente a repetição de games com temática que ela chama de “homens destruindo coisas”. De fato, é fácil detectar esse padrão. Explodir, atirar, bater e matar inimigos devem ser as formas de interação mais frequentes em games de vários gêneros, em parte por estar presente nas primeiras produções dessa mídia que acabaram servindo de padrões para todas as outras. E é uma forma fácil de chamar e cativar os jogadores, já acostumados com esse tipo de jogabilidade.
Acredito que uma das razões para essa prevalência da violência nos games já está em processo de declínio. A distribuição digital e o avanço dos games indies no mercado já têm nos proporcionados títulos de sucesso em que a interação jogador-game apresenta outras soluções que não a violência, como puzzles e exploração. Meus jogos preferidos no ano passado, Gone Home e Papers, Please, são ótimos exemplos dessa tendência. Porém mesmo ótimas experiências como essas ainda revelam um público que quer uma jogabilidade clichê, como ironizado nesta nota do Kotaku norte-americano. Ela apresenta um mod de Gone Home feito justamente para incluir matança de inimigos, chamado Gun Home, sob o título “Finalmente Gone Home virou um game de verdade” e a frase “Porque um videogame não é um videogame ao menos que você mate Hitler”.
O sarcasmo é real, os exemplos desse tipo de pensamento também são. A necessidade de amadurecimento em relação às possibilidades criativas e expressivas da jogabilidade é diretamente relacionada ao próximo item de nossa lista.
4. A violência nos games é interativa
O site Polygon publicou esse mês uma excelente análise da polêmica em torno do game Super Columbine Massacre RPG!, um jogo desenvolvido em RPG Maker que coloca o jogador na pele de Eric Harris e Dylan Klebold, os autores do Massacre de Columbine. Controlando os dois jovens, o player deve assassinar professores e alunos desarmados, revivendo a tragédia de 1999. O jogo, apesar de pouquíssima violência gráfica, foi obviamente mal recebido.
Embora tenham sido feitos filmes de ficção e documentários sobre Columbine, fazer um game sobre esse tipo de episódio é completamente diferente, pois a interatividade dos games não apenas narra a história, mas permite ao jogador “vivê-la”, de certa forma. Combinado com o senso comum de que games são para entretenimento, é extremamente problemático colocar como “diversão” atirar em estudantes. Mesmo que seja crítico, o contexto atual dos videogames em nossa sociedade transforma uma obra dessa em uma espécie de apologia, se a crítica não for muito bem explicitada.
Muitas pessoas de fora do meio gamer ficam especialmente perturbadas pelo fato de, nos games violentos, o jogador controlar as ações. Justamente pelo senso comum colocado acima, de games como diversão. Embora meios de identificação com personagens violentos existam em outras mídias (como filmes e games com anti-heróis e narrativas em primeira pessoa), a sensação de que nos games você é que aperta o gatilho ainda é muito poderosa.
Alguns games sabem explorar os impactos emocionais dessa relação interativa com a violência a colocando a favor da narrativa: Em The Walking Dead: The Game, por exemplo, a culpa e frustração pela necessidade de ações extremas em um cenário extremo são o que tornam o jogo tão emocionante e envolvente. Heavy Rain usa o horror da violência auto-infligida como elemento chave da narrativa. Porém a opção da violência em primeira pessoa pelo choque gratuito ainda continua contribuindo para a imagem negativa da violência nos games.
Temos dois exemplos muito semelhantes desse tipo de apelação. Uma é a cena de estupro de Hotline Miami 2, e outra é uma cena em primeira pessoa que insinua violência sexual em Castlevania: Lords of Shadow 2. Nos dois casos, repórteres mulheres declararam se sentir desconfortáveis ao serem colocadas em perspectiva de primeira pessoa ou observar o próprio personagem cometer um estupro. É questionada a necessidade narrativa dessas cenas. No caso de Castlevania, um dos próprios desenvolvedores argumenta que a ideia da cena era justamente o choque.
Fica o questionamento: é necessário realmente uma cena gratuita de violência em primeira pessoa para criar o efeito emocional que a narrativa do game precisa? Se sim, creio que as particularidades da narrativa interativa devem ser melhor trabalhadas por muitos desenvolvedores. Isso contribuirá para que os games alcancem o tipo de “licença” que o cinema tem para tratar de histórias polêmicas, quem sabe até mesmo Columbine. E ajudará a quebrar um grande preconceito, que é o último item desse artigo.
5. Games ainda são vistos como brinquedos por muitas pessoas
Em 1983 a indústria de games passou por uma grande crise, que levou a Nintendo a reposicionar seus produtos como brinquedos para meninos, com o raciocínio de que brinquedos sempre venderiam. Até então, games não tinham um direcionamento claro de faixa etária e gênero (os anúncios da Atari constantemente apresentavam mulheres e adultos jogando). Mas a jogada da Nintendo deu certo e foi seguida por outras empresas e… pronto, videogames viraram brinquedos no senso comum.
Futuramente a indústria e os gamers quiseram se livrar desse rótulo, afinal, uma geração havia crescido consumindo games e queria continuar jogando. A maneira encontrada foi “amadurecer” os títulos com temáticas violentas. Porém, aí iniciou-se o conflito entre toda uma geração tentando provar que videogame não era apenas para crianças e o público não gamer conservador acreditando que a indústria estava simplesmente criando brinquedos mais e mais violentos. E o resultado, todos conhecemos. A crença de que games são brinquedos é diretamente relacionada à crença de que eles corrompem crianças e jovens.
Enfim, games como qualquer outra mídia dificilmente são culpados sozinhos por qualquer tipo de comportamento, violento ou não. E a violência não é exclusiva dos videogames. Porém entender as particularidades dos games e o contexto que os acusa de potencializadores da violência pode ajudar a avançar na discussão e a diminuir os preconceitos e equívocos que eles ainda carregam. Ou até mesmo a entender o lugar da violência em nossa sociedade.