Um castelo encantado. Princesas, bruxas, acordos e bênçãos. Animais falantes e antropomorfizados. Espíritos elementais que pregam peças em viajantes desatentos. Todos esses elementos são comuns em contos de fada ocidentais, e qualquer leitor de fantasia poderá reconhecê-los de outros livros. Poucos textos, no entanto, conseguem juntar todas essas coisas em uma colcha de retalhos e fazer isso bem. É o que Linda Medley faz no primeiro volume de Castle Waiting.

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O Castelo em toda sua glória (e um scan mal feito)

Castle Waiting não é uma história com um protagonista definido – ou melhor, não um protagonista humano. Após a leitura, penso que o título deixa muito claro sobre o quê é a história: sobre o castelo, e em seguida, sobre as pessoas que buscam nele refúgio. A história começa com uma revitalização do conhecido conto da Bela Adormecida. Um casal de reis, incapazes de ter filhos, recorrem a um grupo de bruxas que mora da floresta de seu próspero reino. As boas bruxas concedem os meios para que o casal tenha uma filha, mas uma das irmãs, invejosa de não ter sido procurada em primeiro lugar, lança uma maldição sobre a recém-nascida: na idade de quinze anos, ela furaria o dedo em um tear e cairia morta. A irmã bondosa consegue desfazer parte do feitiço, transformando a maldição de morte em um sono de cem anos, a ser quebrado pelo beijo de um verdadeiro amor.

Cem anos depois, a jovem de fato desperta, mas não fica no castelo que se preparou, durante todo o tempo, para dela cuidar. Apaixonada, e desprovida de qualquer maturidade no alto da sua adolescência, ela parte com o príncipe recém-conhecido, e o castelo passa, portanto, a abrigar os poucos sobreviventes que também caíram vítimas da maldição, e quaisquer outros rejeitados pela sociedade que nele buscasse abrigo. Assim, várias histórias se cruzam com a do lugar, como a história de Jaine.

Fugida de um casamento e grávida, ela parte em busca do Castelo, e no caminho tem sua parcela de aventuras, envolvendo uma dupla de halflings ladrões (claro), ciganos feiticeiros (cla-ro), e seu próprio passado misterioso (lógico!). No Castelo, ela é muito bem recebia pelos outros habitantes, e aos poucos vai conhecendo um pouco mais sobre seus inusitados moradores: uma cegonha-macho chamada Rackham Adjudant, a cozinheira Dinah Lucina, o ferreiro de poucas palavras e modos estoicos Henry, e vários outros.

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Uso excelente de profundidade de campo. E claro, um tem um cavalo cavaleiro.

A narrativa de Linda Medley tem um ritmo lento, compassado. Há poucos recordatórios e raras intrusões de um narrador, de forma que a história se conta por si mesma. O tom é leve, cotidiano, de modo que não se deve esperar longas sequências de ação e pancadaria. Há opiniões de que no livro “não acontece nada”, o que é, a meu ver, uma opinião injustificada. Muita coisa acontece, mas os eventos são rotineiros, domésticos, prosaicos, mas nem por isso menos encantadores.

Como leitora ávida de contos de fada e livros de fantasia, Castle Waiting é um prato cheio, não apenas pelas referências (que são divertidas), mas pela oportunidade de observar uma consciência literária em ação, construindo um cenário que seja verossímil e busque explicar o papel da mágica em sua composição. Além disso, o quadrinho dialoga com temas que o leitor contemporâneo consegue se identificar quase de imediato, como relações trabalhistas na sociedade (com um dono de um moinho que mantém seus servos como propriedade), preconceito, machismo e criminalidade urbana. Tudo isso sem precisar recorrer a qualquer tipo de exploração, com uma linguagem leve, humorística e divertida.

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Irmã Peace, sempre surpreendendo com a sua barba.

Uma personagem em especial, porém, ganha destaque: a bem-humorada irmã Peace, adepta da Ordem de Freiras Solícitas, uma ordem de freiras cristãs na qual todas são barbadas, e devotas de uma santa em especial, que escapou de um casamento infeliz graças ao surgimento miraculoso de uma barba cheia, da noite para o dia. Peace não é uma das melhores personagens apenas pela sua maneira divertida de levar o seu cotidiano, mas pela relação saudável que representa com a sua religiosidade. Sábia, engraçada e perspicaz, ela é uma das personagens que ajuda a manter a história próxima da realidade.

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“Ela parece tão triste”. “Mas é claro, ela está pregada numa cruz!”

A arte de Linda Medley é cuidadosa, detalhista, mas ainda assim próxima de um estilo cartunesco que agrada e ajuda a construir o tom de comédia, ao tempo que também enche os olhos. Seus personagens têm traços simples, mas são muito expressivos tanto nos rostos como em seus gestos. Não é difícil perceber que às vezes ele beira o caricato, mas não é nada que diminuía o valor da leitura.

Castle Waiting – Vol. 1 é um quadrinho para relembrar porque finais felizes podem ser interessantes, e que tropos e clichês podem ser bem utilizados.

No Brasil, O Castelo Adormecido começou a ser publicado pela Via Lettera, mas após o primeiro volume não houve continuidade. Em inglês, a Fantagraphic Books fez uma edição completa em dois grandes volumes, cada um com em média 450 páginas, capa dura e uma fita de tecido para marcar as páginas.

Ficou com preguiça de ler textão? Que tal conferir a vídeo-resenha de Fernanda Eggers no Ideia Transitiva?