Foi com muita empolgação que aguardei o lançamento de Detroit: Become Human (Quantic Dream, 2018), desde a exibição do curta-metragem Kara. Tenho uma queda por temas envolvendo tecnologias sencientes e histórias que problematizem o conceito do que é ser humano. E se tem luzinhas que deixem tudo mais brilhante, é a armadilha perfeita para meu cartão de crédito.

Nós construímos o seu amanhã: lema irônico para Detroit

Seguindo a mesma linha de outros títulos do estúdio (como Heavy Rain e Beyond: Two Souls), Detroit: Become Human é quase uma história interativa, baseada em quick time activities (aqueles mini jogos em que você precisa seguir as instruções rapidamente, sob o risco de fracassar) e diferentes possibilidades narrativas baseadas em suas escolhas. E a impressão é que ele faz isso muito bem.

Alternando o ponto de vista entre três diferentes personagens, o jogo apresenta uma Detroit onde androides são construídos com aparência e trejeitos indistinguíveis dos seres humanos, ocupando funções tidas como menores: trabalho braçal, doméstico, dentre outros. Não são, portanto, reconhecidos como indivíduos, mas sim itens adquiridos e que recebem ordens sem questionamentos.

Para além dos problemas relacionados à empatia e ao reconhecimento de androides como forma de vida inteligentes (o que pode ser relacionado com a discussão sobre segregação racial, presente e muito forte atualmente em nossa sociedade), o cenário apresentado tem tons de utopia para um grupo muito seleto de pessoas. Com um robô cuidando das funções mais cotidianas, como lavar o banheiro e fazer o jantar, as pessoas poderiam dedicar seu tempo a atividades que lhes trouxessem mais prazer. E claro, para as pessoas que possuam dinheiro e ocupem postos de trabalho que não tenham sido substituídos. Utopias, afinal, nunca são boas para todo mundo.

Mas, mais ou menos como a vida real, a presença de autômatos tão eficientes acaba descarrilhando em níveis crescentes de desemprego. Outro tipo de tensão civil começa a dar as caras: a ideia de que pedaços de plásticos ambulantes estão tomando o lugar de pessoas não apenas nas tarefas mais banais, mas mesmo nas conexões emocionais mais profundas.

Um ponto que pode passar batido por outros públicos é o espaço escolhido para o jogo. Detroit tem um lugar especial no coração dos fãs de ficção científica por abrigar ficcionalmente Robocop (Paul Verhoeven, 1987). Um rápido lembrete, o filme narra a história de um policial que, à beira da morte, recebe implantes que salvam sua vida mas o tornam mais máquina que gente e precisa lidar com uma sociedade impregnada pelo crime e pela corrupção.

Parte homem, parte máquina… todo policial.

Além de habitar o imaginário da ficção científica, há elementos históricos reais que tornam Detroit um cenário diferenciado. No início do século XX, a cidade recebeu grande quantidade de empresas automobilísticas e, consequentemente, trabalhadores, e cresceu vertiginosamente com o influxo econômico. Durante a Segunda Guerra, a produção de artefatos militares fez a economia crescer ainda mais, e movimentos migratórios dentro do próprio país e de outros países das Américas (famílias negras vindas do sul, latinos antes de serem estabelecidas leis mais duras de imigração) tornou a população da cidade ainda mais diversa. A convivência muitas vezes não era pacífica, e com a queda nos rendimentos das fabricantes americanas de automóveis (Ford, Chrysler e General Motors) e o racismo institucionalizado (que dificultava famílias negras na compra e aluguel de imóveis, por exemplo), tensões raciais e segregacionistas foram se acumulando até resultar em disputas raciais violentas, com mortos, feridos, saques e destruição de patrimônio.

O boom econômico acabou, as fabricantes de automóveis perderam espaço no mercado internacional, a automação foi avançando e o resultado foi óbvio: desemprego, índices de criminalidade altíssimos e um grande êxodo da cidade. Esse conjunto de fatores acabou por criar uma cidade fantasma, com imensas áreas abandonadas, sofrendo com os efeitos de grandes níveis de pobreza e propensa a crimes violentos.

Detroit em 1940. / Créditos: The Atlantic.

Certo, e a trama?

Esses elementos históricos compõem o pano de fundo de Detroit: Become Human. Como o título do jogo indica, o tornar-se humano é o propulsor da trama que contempla os três personagens, cada um servindo para abordar diferentes aspectos dessa problemática.

Kara é despertada após uma manutenção que apaga sua memória, mas logo se descobre como cuidadora do lar e da pequena Alice. Vivendo em um lado mais pobre da cidade, é possível ter acesso aos efeitos devastadores do desemprego endêmico em uma família abusiva. Logo você se vê diante da escolha de quebrar a programação original da androide para proteger a menina. Seguindo por esse caminho, é possível explorar a história como uma androide em fuga.

Markus é o responsável por cuidar de um pintor famoso, morando em uma região rica e, ainda assim, não ausente de seus percalços. Apesar dos privilégios envolvendo o estrato social que ocupa, Markus sofre com o preconceito e acaba sendo confundido pela polícia como um agressor. Deixado para morrer em um ferro velho, com restos de androides se acumulando indiscriminadamente, torna-se um líder revolucionário representando a espécie androide.

Essa quebra na programação dos androides tem se provado grande incômoda para o atual status quo, bem como para a empresa que os fabrica. Assim, não há solução melhor do que enviar… outro androide para investigar e resolver a situação. Connor, personagem que abre o jogo, é um modelo especializado em coletar e investigar dados e situações. Atuando nos interesses da Cyberlife, ele começa a investigar e tentar descobrir o que vem causando esse surto de ganho de consciência nas máquinas.

Connor, Markus e Kara: androides protagonistas de Detroit

Muitos paralelos podem ser feitos, como segregação racial, desobediência civil e empatia para com o outro. Embora meio cambaleante no início, o roteiro é envolvente, e o branching narrativo é surpreendentemente bem escrito (superando facilmente o título anterior do estúdio, Beyond: Two Souls). Embora alguns capítulos sejam meramente expositivos, vários possuem escolhas que de fato influenciam no decorrer da trama, podendo resultar na morte de personagens ou desfechos completamente diferentes.

Jogabilidade

Baseada em QTA, a jogabilidade de Detroit é simples, apresentando poucos momentos realmente desafiadores. Como o jogo é voltado para as decisões de quem controla os personagens, não há prejuízo nessa escolha da empresa. Um público que busque mais desafios em termos de gameplay poderá ficar desapontado, mas quem procura uma história onde a ilusão de escolha prevaleça não terá do que reclamar.

O que é novidade em relação aos outros jogos do estúdio é a possibilidade de jogar novamente os capítulos isolados. No menu inicial, na opção “Flowchart”, é possível retornar aos checkpoints, modificando as diferentes partes do enredo que por acaso venha a desagradar. Admito que fiz uso uma vez no primeiro gameplay, quando meu personagem preferido morreu. Afinal, por que me privar do ponto de vista que mais me interessava?

Não tem lááá muito botão para aoertar, afinal

O mais interessante nessa escolha é a possibilidade de explorar as diferentes possibilidades sem precisar sobrescrever suas escolhas. Assim, se ao final de um capítulo, você se perguntar “Ah, se eu escolhesse esse caminho, qual seria o resultado dessa situação?”, é possível saber. A opção de não salvar fará com que o gameplay não conte para a compleição do jogo (atenção, colecionistas!), mas permite a experiência da possibilidade sem as consequências.

O visual do jogo é excelente e muito detalhista, mas o destaque vai, de longe, para a dublagem dos personagens. As atuações criam personagens verossímeis e fáceis de se relacionar, tornando a experiência mais envolvente. A movimentação dos personagens, por vezes, fica prejudicada, visto que os momentos de interação são disparados por gatilhos específicos dentro do jogo.

Em resumo…

Detroit: Become Human segue o padrão de jogo já adotado pela Quantic Dreams, trazendo algumas inovações que facilitam o andamento do gameplay. Com um roteiro acertado e boas ramificações narrativas, o jogo parece sim uma história interativa, mas provê uma experiência imersiva e que atende bem a ideia de ilusão de escolha. Pode não agradar ao público que prefira um gameplay desafiador, mas faz o que se propõe com propriedade.